O curioso caso da sociedade de uma pessoa só

Uma das inovações mais comentadas da Lei da Liberdade Econômica foi a criação das sociedades unipessoais. Mas será que faz sentido falar-se em sociedade de menos de uma pessoa?

 

Em 20 de setembro de 2019 foi promulgada a Lei n.º 13.874, a já famigerada Lei da Liberdade Econômica (LLE), proveniente da conversão em lei da Medida Provisória n.º 881/2019, a autointitulada MP da Liberdade Econômica.

Uma das ânsias que essa lei declaradamente se propôs a atender é a de haver melhores condições para o indivíduo que pretenda empreender sozinho.

Afinal, previamente à Lei da Liberdade Econômica, o indivíduo que pretendesse empreender sozinho somente dispunha de duas opções. A primeira era a de constituir-se em Empresário Individual (EI), conforme o art. 966 do Código Civil, ou em Microempreendedor Individual (MEI), conforme a Lei Complementar 128/2008, o que, nesses casos, concentraria a atividade em sua própria pessoa e, não chegando a formar uma pessoa jurídica (lembre-se que EI e MEI não são pessoas jurídicas, apenas possuem CNPJ para fins tributários), vincularia integralmente seu patrimônio pessoal às obrigações contraídas em/pelo seu negócio. A segunda era a de registrar uma Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI), conforme o art. 980-A do Código Civil. Nesse caso, o indivíduo dispunha do bônus de poder instituir sozinho uma pessoa jurídica de responsabilidade limitada, mas estava sujeito ao ônus de dispor de patrimônio correspondente a 100 salários mínimos para tanto. Ainda, uma única pessoa só poderia constituir uma única EIRELI e havia discussões acerca de se a EIRELI poderia ser constituída por pessoas jurídicas.

Nessas circunstâncias, empreender sozinho significava sempre optar por algum extremo. Ou o indivíduo vinculava seu patrimônio pessoal ao negócio e se tornava EI ou MEI, ou então, para obter autonomia patrimonial, absorvia uma série de outros ônus e constituía uma EIRELI – cujas exigências são consideradas por muitos uma ingerência onerosa demais à iniciativa privada, além de um desestímulo à atividade empreendedora, por não se alinharem à realidade financeira da maioria dos brasileiros. Afinal, 100 (cem) salários mínimos é bastante dinheiro. Uma terceira via do empreendedor solitário pré-LLE, muito comum em terrae brasilis como forma de iludir o requisito de multiplicidade de pessoas para a constituição de sociedades simples ou empresárias era a das sociedades ditas pro forma: sociedades com sócios, em muitos casos, “para inglês ver”, detentores de frações mínimas (normalmente 1%). Havia também, e eles não são exceção, os empreendedores que simplesmente permaneciam na informalidade, seja por desconhecimento, seja por empecilhos burocráticos.

Foi então para fomentar a atividade empreendedora e ao mesmo tempo proteger o patrimônio pessoal do empreendedor individual que a Lei da Liberdade Econômica alterou a Lei n.º 10.406/02, o Código Civil Brasileiro, de modo a incluir os parágrafos 1º e 2º em seu art. 1.052, permitindo agora que as sociedades limitadas sejam constituídas por uma única pessoa.

A Lei da Liberdade Econômica propõe, ora pois, que simplesmente se permitam criar sociedades limitadas unipessoais.

Ocorre que, ainda que o âmago da proposta mire em resolver um legítimo problema para o mercado privado, a forma como a LLE se lança a corrigir a questão mais uma vez faz valer a tradição brasileira de atender a urgentes necessidades por alterações no direito por meio de má técnica legislativa. Problemas e demandas que exigiriam uma complexa cirurgia normativa não raro são resolvidos com meros band-aids legislativos, ou, o que é pior, com autoritários atos proto-legislativos (é você mesmo, medida provisória!) que sem qualquer cuidado se propõem a alterar alguma consolidação de décadas a séculos de amadurecimento jurídico-legislativo (como é o caso do Código Civil) por meio de uma despreocupada canetada ̶c̶o̶m̶ ̶u̶m̶a̶ ̶b̶i̶c̶.

Essa tradição parece se repetir no caso da sociedade unipessoal. Vamos então entender seu curioso caso.

Primeiro, se a expressão sociedade unipessoal não causa estranhamento, deveria, porque consiste em verdadeira contradição entre termos. “Sociedade”, na língua portuguesa, em todas suas acepções, presume a ideia de pluralidade de pessoas. Nenhum significado cultural e historicamente emprestado à palavra remete a entidade (de qualquer espécie) formada por uma única pessoa. Sociedade unipessoal, por isso, é uma expressão sem um quê de sentido. É o mesmo que falar-se em “duplas de um”, ou “trios de dois”. Convenções linguísticas podem ser revistas? Claro. Mas convencionar significados não habituais (pior, opostos aos habituais) para certas palavras aumenta sua imprecisão e invariavelmente prejudica a compreensão do discurso em que elas se inserem. Esse ponto serve como a primeira e óbvia evidência da falta de apuro técnico da alteração legislativa.

Ao nonsense semântico agrega-se o fato de que a lei alteradora não tomou nem o cuidado de adequar o dispositivo legal que define no que consiste, primeiro, o contrato de sociedade (art. 981 do Código Civil). Assim, ainda que o art. 1.052§§ 1º e 2º do Código Civil agora contemple sociedade formada por pessoa (no singular), o mesmo Código Civil define sociedade como contrato celebrado por pessoas (no plural) “que reciprocamente [existe reciprocidade consigo mesmo?] se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.” Há aí uma tangível antinomia que, embora evidentemente superável, é absolutamente desnecessária.

Ademais, a inserção da sociedade unipessoal no art. 1.052 – topologicamente situado na seção legislativa referente às sociedades limitadas – e não no art. 981, induz à também desnecessária discussão de se essa nova figura (i) se limita necessariamente às sociedades limitadas e (ii) se se limita às sociedades empresárias, excluídas as simples. Embora o mau posicionamento topológico da alteração não resista a uma interpretação teleológica responsável, que certamente permitirá constatar que não há razão jurídica-econômica para excluir do âmbito das sociedades unipessoais outros tipos societários ou também as sociedades não-empresárias, impõe-se aí mais um prejuízo para a clareza do instituto e, ultimamente, para sua harmonização dentro da estrutura do ordenamento jurídico brasileiro. É justamente esse o tipo de má técnica legislativa que acaba por agigantar o aparato burocrático, pois oportuniza incertezas, dúvidas obtusas e complexidades desnecessárias que dificultam que tanto os particulares quanto os agentes públicos que precisam lidar com esse aparato saibam precisamente como se portar.

Superados os problemas linguísticos e topológicos, há o fato de que a Lei da Liberdade Econômica não chegou a eliminar nem o EI/MEI e nem a EIRELI. E isso ainda que as sociedades unipessoais provavelmente venham a suplantar qualquer utilidade ou interesse prático tanto de/em um quanto da/na outra. Assim, passam a coexistir três formas de empreendimento individual extremamente semelhantes (e isso mais ainda entre sociedade unipessoal e EIRELI) e voltadas aos mesmos objetivos, mas sujeitas a regimes jurídicos diferentes. Qual o problema disso? A criação de uma salada normativa possivelmente antinômica e certamente confusa, temperada ainda com dispositivos legais sem mais respaldo na realidade ou sem qualquer relevância prática atual. Disso (provavelmente você já deduziu) advém mais dúvidas.

Para concluir, é preciso reafirmar: não há dúvidas que devem ser viabilizados meios para que o indivíduo consiga atuar no mercado privado com autonomia patrimonial. Isso é um imperativo do estado da arte da iniciativa privada em sede mundial; é forma de acompanhar a tendência em direito empresarial de outros ordenamentos jurídicos. Não há problema que um indivíduo sozinho constitua pessoa jurídica com autonomia patrimonial de forma facilitada. O mérito da LLE nesse ponto é claro. Não deixa de constituir avanço e certamente contribui para a diminuição da informalidade e para um mercado mais saudável. O problema é o fato de isso ter sido feito temerariamente e sem o amparo técnico e o cuidado que uma alteração dessa natureza no Código Civil (provavelmente o mais importante estatuto legislativo do Brasil) demanda ̶(̶n̶o̶s̶ ̶a̶b̶s̶t̶e̶m̶o̶s̶ ̶d̶e̶ ̶c̶o̶m̶e̶n̶t̶a̶r̶ ̶a̶c̶e̶r̶c̶a̶ ̶d̶a̶ ̶a̶b̶s̶u̶r̶d̶a̶ ̶i̶n̶c̶o̶n̶s̶t̶i̶t̶u̶c̶i̶o̶n̶a̶l̶i̶d̶a̶d̶e̶ ̶e̶m̶ ̶p̶r̶o̶m̶o̶v̶e̶r̶-̶s̶e̶ ̶e̶s̶s̶e̶ ̶t̶i̶p̶o̶ ̶d̶e̶ ̶m̶u̶d̶a̶n̶ç̶a̶ ̶p̶o̶r̶ ̶m̶e̶i̶o̶ ̶d̶e̶ ̶m̶e̶d̶i̶d̶a̶ ̶p̶r̶o̶v̶i̶s̶ó̶r̶i̶a̶)̶.

Melhor seria, talvez, simplesmente aprimorar a EIRELI, (i) reduzindo (ou eliminando) a exigência do capital mínimo de 100 (cem) salários mínimos; (ii) autorizando expressamente a constituição de EIRELI por pessoa jurídica; (iii) expressamente permitindo a constituição de EIRELI não-empresária.

No mais, cabe ressalvar que, não obstante a necessidade legítima de haver meio mais simples de o indivíduo instituir pessoa jurídica com autonomia patrimonial sozinho, os dois extremos, do EI/MEI e da EIRELI, existem por uma razão, e essa razão consiste na conferência de proteção patrimonial a quem com uma dessas duas figuras contrata. No caso do EI/MEI, o credor dispõe do patrimônio pessoal do devedor para atingir. No da EIRELI, já há patrimônio considerável à disposição. Não é incorreto, porém, assumir que essa razão substancie exagerada tentativa do Estado em proteger o particular e que, no final, acaba por prejudicar a iniciativa privada e a favorecer a informalidade. É justamente em função dessa crítica que vinha se clamando por alterações. Aqui, deve-se apenas alertar que, quando se passa a permitir que indivíduos constituam sozinhos pessoas jurídicas de responsabilidade limitada sem quaisquer restrições, cria-se certamente um risco ao empresariado que com essas pessoas jurídicas contratam. A demanda por mudança, portanto, deve vir necessariamente acompanhada do necessário cuidado ao contratar com sociedade limitada unipessoal, que pode muito bem não dispor de capital integralizado para absorver suas eventuais dívidas.

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