A ideia de que as “multas administrativas” aplicadas pelas empresas responsáveis pelos sistemas rotativos nos municípios serão convertidas em multas de trânsito não passa de um mito.
Quem nunca saiu de carro e precisou rodar durante um certo tempo até conseguir encontrar uma vaga para estacionar? Dependendo da cidade, a busca pode demorar um longo tempo, levando os motoristas a desistirem ou a procurarem um estacionamento pago, cada vez mais comum nas grandes cidades brasileiras.
Enquanto o número de vagas existentes no Brasil parece impressionar, chegando, apenas na capital paulista, ao número de 500.000 (quinhentas mil), a demanda não parece ser atendida, dado que, quanto mais carros, menor a oferta proporcional de vagas. Somado a isso, o número de veículos não para de crescer no país, alcançando, nesta década, a estatística aproximada de 1 veículo a cada 4 habitantes. Números maiores, por exemplo, do que a quantidade de brasileiros com diploma do ensino superior.
Os municípios, visando resolver o problema, instituíram, em várias partes do Brasil, os chamados “sistemas rotativos”, mediante os quais se cobra um valor pelo tempo em que o veículo fica estacionado em uma vaga pública, com os serviços sendo concedidos a empresas privadas, responsáveis por realizar a instalação de parquímetros e a fiscalização dos usuários. Como forma de sanção, quem não cumpre com a determinação ou “estoura” o tempo pago recebe da empresa uma notificação ou “multa administrativa” que, se desrespeitadas, teoricamente são automaticamente convertidas em auto de infração de trânsito.
A ideia é válida e legal (art. 103 do Código Civil Brasileiro), principalmente se considerarmos que possuem isenção das tarifas os moradores dos bairros que contam com o sistema rotativo, mas que não dispõem de vagas de garagem em seus imóveis. Nesses casos, deve o morador realizar uma solicitação junto às prefeituras dos municípios, bem como comprovar a propriedade de seu imóvel e de seu veículo. Com isso, busca-se, ao mesmo tempo, não prejudicar o cidadão que necessita deixar seu veículo na via pública e, por outro lado, estimular que as pessoas usem menos veículos particulares ou “larguem” seus automóveis por longos períodos nas vagas pertencentes ao município. São beneficiados a sociedade e, principalmente, o comércio de rua.
Entretanto, é importante frisar que a aplicação de penalidades como multas administrativas e/ou a conversão automática destas multas em autos de infração de trânsito por empresa privada é indevida e não encontra qualquer respaldo legal.
Em primeiro lugar, deve-se notar que a capacidade do Estado de limitar ou condicionar as liberdades e os direitos do cidadão comum é chamado de “poder de polícia”. Este poder permite, por exemplo, que o Estado, fundado em lei vigente e/ou no interesse público, aplique multas de trânsito, fiscalize estabelecimentos que servem alimentos através de vigilância sanitária ou aplique provas para a emissão da carteira nacional de habilitação.
Dito isso, muitas dúvidas existiam em relação à possibilidade de o Estado delegar essa função a um ente privado com base no art. 175 da Constituição Federal, que prevê a eventualidade de o ente público conceder ou permitir, por meio de licitação, a prestação de serviços públicos, muito comumente utilizada para “desinchar” a máquina pública.
Contudo, tanto o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da ADI n.º 1717, quanto o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp n.º 817.534/MG, se posicionaram de maneira muito clara em relação à possibilidade de concessão do chamado “poder de polícia” a pessoas jurídicas de direito privado. Senão vejamos:
DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS. 1. Estando prejudicada a Ação, quanto ao § 3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, a Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do “caput” e dos § 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do mesmo art. 58. 2. Isso porque a interpretação conjugada dos artigos 5º, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados. 3. Decisão unânime. (STF – ADI: 1717 DF, Relator: SYDNEY SANCHES, Data de Julgamento: 07/11/2002, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 28-03-2003 PP-00061 EMENT VOL-02104-01 PP-00149)
STJ
ADMINISTRATIVO. PODER DE POLÍCIA. TRÂNSITO. SANÇÃO PECUNIÁRIA APLICADA POR SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. IMPOSSIBILIDADE. 1. Antes de adentrar o mérito da controvérsia, convém afastar a preliminar de conhecimento levantada pela parte recorrida. Embora o fundamento da origem tenha sido a lei local, não há dúvidas que a tese sustentada pelo recorrente em sede de especial (delegação de poder de polícia) é retirada, quando o assunto é trânsito, dos dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro arrolados pelo recorrente (arts. 21 e 24), na medida em que estes artigos tratam da competência dos órgãos de trânsito. O enfrentamento da tese pela instância ordinária também tem por conseqüência o cumprimento do requisito do prequestionamento. 2. No que tange ao mérito, convém assinalar que, em sentido amplo, poder de polícia pode ser conceituado como o dever estatal de limitar-se o exercício da propriedade e da liberdade em favor do interesse público. A controvérsia em debate é a possibilidade de exercício do poder de polícia por particulares (no caso, aplicação de multas de trânsito por sociedade de economia mista). 3. As atividades que envolvem a consecução do poder de polícia podem ser sumariamente divididas em quatro grupo, a saber: (i) legislação, (ii) consentimento, (iii) fiscalização e (iv) sanção. 4. No âmbito da limitação do exercício da propriedade e da liberdade no trânsito, esses grupos ficam bem definidos: o CTB estabelece normas genéricas e abstratas para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (legislação); a emissão da carteira corporifica a vontade o Poder Público (consentimento); a Administração instala equipamentos eletrônicos para verificar se há respeito à velocidade estabelecida em lei (fiscalização); e também a Administração sanciona aquele que não guarda observância ao CTB(sanção). 5. Somente o atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, pois aqueles referentes à legislação e à sanção derivam do poder de coerção do Poder Público. 6. No que tange aos atos de sanção, o bom desenvolvimento por particulares estaria, inclusive, comprometido pela busca do lucro – aplicação de multas para aumentar a arrecadação. 7. Recurso especial provido.(STJ – REsp: 817534 MG 2006/0025288-1, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 10/11/2009, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/12/2009)
Desta maneira, podemos extrair o seguinte dos julgamentos acima: o “poder de polícia” pode ser delegado, desde que seja apenas suas atividades de “consentimento” e “fiscalização”, mas nunca suas atividades de “sanção” e “legislação”, atividades típicas e exclusivas do poder público.
Dessa forma, vemos que as empresas privadas para as quais foi concedida a autorização para instalar e gerar os sistemas de rotativo municipais podem (e devem) fiscalizar sua utilização e, inclusive, no caso de constatação de situação irregular, notificar as autoridades públicas, seja um agente de trânsito; a guarda municipal – que teve sua competência para tanto confirmada pelo STF no julgamento do RE 658570 –, ou ainda a Polícia Militar – caso haja convênio vigente entre o órgão e prefeitura local (art. 23 do CTB)–, para que estes apliquem a sanção prevista no art. 181, parágrafo XVII do CTB.
Por outro lado, diante do mesmo raciocínio, observa-se que tanto a aplicação de “multas administrativas” por parte das concessionárias, quanto a conversão automática destas “multas” em autos de infração, consistem em atividades irregulares que não encontram qualquer justificativa legal, tratando-se de tema pacífico nas cortes superiores do país, conforme demonstrado.
Por fim, é importante frisar que, como cidadãos, ao mesmo tempo em que temos que exigir nossos direitos, temos o dever de cumprir com nossas obrigações, sempre em estrita observância às leis vigentes e ao ordenamento jurídico como um todo. Assim, pontua-se que constitui infração de trânsito estacionar em local que possua parquímetro sem o correspondente pagamento da tarifa prevista para a quantidade de tempo desejado, estando o infrator, nesse caso sujeito à aplicação de multa pecuniária e à anotação de infração do tipo GRAVE na CNH, desde que aplicadas pelos agentes competentes.